sábado, 15 de novembro de 2014

Com Apenas uma Frase

Devia ter por volta de seus noventa e poucos anos quando o encontrei pela primeira e única vez. Disse-me: “Fui muito amado durante minha vida.”. E falava com tamanha lucidez como quem dissesse: sempre me trouxeram chocolate e vinho, sempre vi o pôr do sol à beira mar todas as tardes enquanto caminhava até a Fortaleza dos Reis Magos.
Não havia soberba em sua frase, mas algo entre a humanidade e irreverência divina. Parecia um artista, que olhando seu desenho findado assina seu nome embaixo. Existia um enfado em suas palavras e gestos. Parecia se retirar de um banquete satisfeito. Estava pronto para morrer, já que sempre estivera pronto para amar.
Refleti por uns instantes e se fosse um rei mandaria fazer um busto de bronze com imagem sua. Porém, do jeito que falava, pedia apenas que em seu túmulo eu escrevesse; “Aqui jaz um homem que soube o que é ser amado e que também amou sem reservas.”. E aquele homem com seus noventa e tantos anos me confessou amar sem nenhum constrangimento. Não lhe mirei arma alguma cobrando dele algo porque ele que tinha algo a me oferecer. Foi muito diferente dos inconfessáveis de sentimentos, nem mesmo até debaixo de um “pau-de-arara”: permanecem intactos, mesmo se afogando de paixão, ardendo em amor, e não se entregam. E, no entanto, basta ler-lhe a ficha que está tudo lá: contrabandista ou guerreiro do amor.
Uns dizem: namorei muito. Outros acrescentam: casei várias vezes. E ainda tem os que se orgulham: fiz vários filhos. Teve até um cantor que disse: tive todas as mulheres que quis. Há, ainda, os que dizem: não posso viver sem fulana ou fulano. Citando indiretamente a Bíblia, diz que Abraão gerou Isac que gerou Jacó que gerou doze tribos de Israel. Mas quantos deles disse: “Fui muito amado durante minha vida.”? Certamente nenhum.
E do alto dos seus noventa e tantos anos aquele homem derramou sobre mim essa frase, me senti não apenas como um filho que quer ser como o pai quando crescer. Senti-me uma criança de seus cinco anos desejando ser um homem de seus noventa e tantos anos que diga: “Fui muito amado durante minha vida.”. Se não pensasse isto, não seria digno de receber aquela frase. E jamais poderia deixar passar essas sábias palavras que levaram noventa e tantos anos para se formarem. É como se eu visse diante de mim a lagarta transformando-se numa linda borboleta.
Ao ouvi-lo, por um momento, pensei em tudo o que Freud afirmara sobre que o desejo nunca é preenchido e que se o é, o é por frações de segundos – corrijam-me se eu estiver errado, por favor – e que a vida é insatisfação e busca incessante, tudo isso era coisa passada. E como diria Affonso Romano, “sobre o amor há muitas frases inquietas por aí.”. O próprio Bilac nos disse: “Eu tenho amado tanto e não conheço o amor.”. Até o Jabor afirmou: “O amor deixa muito a desejar.”. Quem nunca citou a frase “Eu era feliz e não sabia.”, mesmo sem saber seu autor, o saudoso Ataulfo Alves.
Aliás, tá aí uma frase que pode perfeitamente ser atualizada: eu era amado e não sabia. Sim, porque nem todos sabem reconhecer quando são amados. Versos e estrofes te aquecem do frio, flores te banham a alma, um banquete real esta sendo servido e, entediado, olha em outra direção.
Perdoe-me caros leitores por não lhes apresentar o personagem. Talvez me repreendam e é justa a represália. Mas sejamos sinceros, quando alguém está amando, já nos contamina com lírios silvestres do campo. Temos vontade de dizer, vendo-o passar: ame por mim. Exatamente quando se diz a alguém que está indo a uma festa e você diz: por favor, divirta-se por mim.
Ver uma pessoa amando é como ler um romance de amor ou como ver um filme também. A história pode ser do outro, mas passa pra gente.
Reconhece-se a vinte metros um desamado. Porém, reconhece-se a cem metros um bem-amado. Sua luz transcende. Sinos batem numa harmonia sequer pensada por Mozart ou Bethoveen. Os passarinhos pousam em sua cabeça e flores nascem no rastro deixado por ele.
Aquele que ama é um propagador.
Toca-lo é colher temperança.
O bem-amado, mais uma vez parafraseando Affonso Romano, dá a impressão de inesgotável. É uma usina de luz que de tão necessário à sociedade deveria ser declarado um bem de utilidade pública.
Tibúrcio Valério

Nenhum comentário:

Postar um comentário