Devia ter por
volta de seus noventa e poucos anos quando o encontrei pela primeira e única
vez. Disse-me: “Fui muito amado durante minha vida.”. E falava com tamanha
lucidez como quem dissesse: sempre me trouxeram chocolate e vinho, sempre vi o
pôr do sol à beira mar todas as tardes enquanto caminhava até a Fortaleza dos
Reis Magos.
Não havia
soberba em sua frase, mas algo entre a humanidade e irreverência divina.
Parecia um artista, que olhando seu desenho findado assina seu nome embaixo.
Existia um enfado em suas palavras e gestos. Parecia se retirar de um banquete
satisfeito. Estava pronto para morrer, já que sempre estivera pronto para amar.
Refleti por
uns instantes e se fosse um rei mandaria fazer um busto de bronze com imagem
sua. Porém, do jeito que falava, pedia apenas que em seu túmulo eu escrevesse;
“Aqui jaz um homem que soube o que é ser amado e que também amou sem
reservas.”. E aquele homem com seus noventa e tantos anos me confessou amar sem
nenhum constrangimento. Não lhe mirei arma alguma cobrando dele algo porque ele
que tinha algo a me oferecer. Foi muito diferente dos inconfessáveis de
sentimentos, nem mesmo até debaixo de um “pau-de-arara”: permanecem intactos,
mesmo se afogando de paixão, ardendo em amor, e não se entregam. E, no entanto,
basta ler-lhe a ficha que está tudo lá: contrabandista ou guerreiro do amor.
Uns dizem:
namorei muito. Outros acrescentam: casei várias vezes. E ainda tem os que se
orgulham: fiz vários filhos. Teve até um cantor que disse: tive todas as
mulheres que quis. Há, ainda, os que dizem: não posso viver sem fulana ou
fulano. Citando indiretamente a Bíblia, diz que Abraão gerou Isac que gerou
Jacó que gerou doze tribos de Israel. Mas quantos deles disse: “Fui muito amado
durante minha vida.”? Certamente nenhum.
E do alto dos
seus noventa e tantos anos aquele homem derramou sobre mim essa frase, me senti
não apenas como um filho que quer ser como o pai quando crescer. Senti-me uma
criança de seus cinco anos desejando ser um homem de seus noventa e tantos anos
que diga: “Fui muito amado durante minha vida.”. Se não pensasse isto, não
seria digno de receber aquela frase. E jamais poderia deixar passar essas
sábias palavras que levaram noventa e tantos anos para se formarem. É como se
eu visse diante de mim a lagarta transformando-se numa linda borboleta.
Ao ouvi-lo,
por um momento, pensei em tudo o que Freud afirmara sobre que o desejo nunca é
preenchido e que se o é, o é por frações de segundos – corrijam-me se eu
estiver errado, por favor – e que a vida é insatisfação e busca incessante,
tudo isso era coisa passada. E como diria Affonso Romano, “sobre o amor há
muitas frases inquietas por aí.”. O próprio Bilac nos disse: “Eu tenho amado
tanto e não conheço o amor.”. Até o Jabor afirmou: “O amor deixa muito a
desejar.”. Quem nunca citou a frase “Eu era feliz e não sabia.”, mesmo sem
saber seu autor, o saudoso Ataulfo Alves.
Aliás, tá aí
uma frase que pode perfeitamente ser atualizada: eu era amado e não sabia. Sim,
porque nem todos sabem reconhecer quando são amados. Versos e estrofes te
aquecem do frio, flores te banham a alma, um banquete real esta sendo servido
e, entediado, olha em outra direção.
Perdoe-me
caros leitores por não lhes apresentar o personagem. Talvez me repreendam e é
justa a represália. Mas sejamos sinceros, quando alguém está amando, já nos
contamina com lírios silvestres do campo. Temos vontade de dizer, vendo-o
passar: ame por mim. Exatamente quando se diz a alguém que está indo a uma
festa e você diz: por favor, divirta-se por mim.
Ver uma
pessoa amando é como ler um romance de amor ou como ver um filme também. A
história pode ser do outro, mas passa pra gente.
Reconhece-se
a vinte metros um desamado. Porém, reconhece-se a cem metros um bem-amado. Sua
luz transcende. Sinos batem numa harmonia sequer pensada por Mozart ou
Bethoveen. Os passarinhos pousam em sua cabeça e flores nascem no rastro
deixado por ele.
Aquele que
ama é um propagador.
Toca-lo é
colher temperança.
O bem-amado,
mais uma vez parafraseando Affonso Romano, dá a impressão de inesgotável. É uma
usina de luz que de tão necessário à sociedade deveria ser declarado um bem de
utilidade pública.
Tibúrcio
Valério