A história de dois anjos
As horas insistiam em passar vagarosamente como os
passos do jabuti. Ele insistentemente caminhava de um lado a outro dentro
daquele quarto sujo. Há muito tempo que deixou de se importar com a limpeza do
seu lugar de descanso. Hoje é apenas mais um espaço que deita para dormir as
poucas horas que consegue. Os pensamentos maus ocupam o espaço do sono na
mente, mesmo com as drogas que agora consumia, nem o “pós-efeito” fazia-o
desabar e dormir por horas ou até mesmo dias. Não se conformava com a sorte.
Não acreditava mais em Deus. Quebrou todas as imagens sacras que sua mãe
guardava com tanto zelo. Não admitia vê-la orando junto àquelas imagens que um
dia ele pôs fé. Deus me abandonou e agora quem não quer mais saber dele sou eu,
pensava. Saiu em direção à rua. Estava transtornado e nem percebeu a mãe na
sala que quando o viu começou a tremer de medo daquele que abrigou por nove
meses em seu ventre, o bebê a quem chamou de Miguel, o anjo que pensou por uns
instantes pôr no mundo. Anos depois viu estar errada quando recebeu do próprio
sangue uma tapa no rosto de uma série que viriam depois, tudo por falta de
dinheiro para gastar com drogas.
Seus olhos queimavam. O ódio era visível no rosto.
Qualquer pessoa que o encontrasse notaria a pele que revestia a face tremer.
Uma veia no rosto parecia querer expelir sangue de tão visível que estava. Por
um momento pensou ouvir vozes. Pessoas ao seu redor o mandavam ir. Assustou-se
com os sussurros em seu ouvido e caiu sobre o lixo. Ouviu risos, mas não havia
ninguém por perto e isso o deixava enfurecido. Precisava se drogar, mas não
tinha dinheiro. Então iria roubar, e se fosse preciso matar, não hesitaria. Foi
de caminho às ruas. Tropeços, algumas quedas, mãos nas paredes e as vozes não
saiam de perto do anjo de asas depenadas.
Ele corria de um lado a outro do quarto para atrasar-se
pro seu encontro com Ângela. Corre filho, gritava a mãe da sala. Olhou-se
novamente no espelho, ajeitou o cabelo e saiu. Vai com Deus meu filho, disse
Dona Maria. Ele beijou-a na testa e saiu em direção ao carro. Colocou o CD da
Vanessa da Mata que havia ganhado da namorada, ligou o veículo e foi ao
encontro dela.
Dona Maria observou o filho partir como fazia
todas as noites quando ele saia para a faculdade. Hoje era diferente porque seu
anjo, como ela sempre dizia, saia para pedir sua namorada em casamento. Horas
antes havia ido com ele comprar um anel de noivado, um dos mais lindos que já
vira. Era de ouro com um diamante. Foi a joia mais cara da loja, como também, a
mais bonita. Rafael estava feliz neste dia, seus olhos brilhavam como o
diamante do anel. Ela sabia o quanto o filho seria feliz no casamento porque
sua futura esposa era a mulher certa para ele. O carro desapareceu ao horizonte
e Dona Maria entrou com a tranquilidade de sempre. Passou em frente à foto do
seu falecido marido e disse ter a certeza que ‘nosso filho será feliz’.
Ângela enfeitava-se em frente ao espelho. Havia
caprichado na maquiagem, queria ficar linda para o jantar especial prometido
por Rafael. Comprara um perfume novo e sabia que seu namorado aprovaria. Era de
um cheiro suave e doce, beirando o aroma da amora com um toque do jasmim
silvestre. Seu vestido era lilás, com um toque de sensualidade deixando o corpo
bem marcado. Abriu a gaveta da mesinha para pegar seu brinco de brilhante e se
deparou com uma fotografia da primeira viagem juntos. Os dois de rostos colados
numa praia em Fernando de Noronha. Aquela viagem fora muito especial. Sabia ter
encontrado o homem de sua vida e estava certa que passaria o resto dela ao seu
lado. Foi numa praia quase deserta de Fernando de Noronha que se entregou por
completo a seu amor. Foi ali que deixou de ser uma menina para se tornar uma mulher.
Viveram momentos lindos naquela ilha mágica. A natureza parecia uni-los cada
vez mais. Fizeram juras eternas. Amaram-se e entregaram-se um ao outro.
Suspirou e saiu de seus bons pensamentos para voltar à realidade e terminar de
se aprontar para o jantar.
Rafael ia ouvindo “Case-se Comigo” e pensando nos
bons momentos que viveu junto a sua namorada e no que iriam viver. Ele queria
três filhos. Ela apenas um. Ele queria dois meninos e uma menina. Ela apenas
uma menina, a quem chamaria de Angélica.
Miguel se dirigia ao sinal. Queria esperar o
momento certo para abordar alguém. Retirou do bolço uma arma velha roubada de
um traficante morto num tiroteio que ele participara entre policiais e seus
companheiros. Restava apenas uma bala que ele só usaria se necessário. Um carro
ao longe se aproximava. Miguel escondeu-se por traz do poste que estava com a
luz queimada.
Dona Maria sentiu um mal estar. Sentou-se para não
cair. Veio à mente Rafael. A mãe de Miguel ouviu um tiro. Ela gritou. Dona
Maria sentiu uma dor, soltou o terço que estava nas mãos e foi ao chão. Ângela
passava o perfume e o vidro caiu. O perfume derramava pelo quarto exalando um
cheiro forte, não mais doce.
[Alguns segundos antes...]
O sinal ficou vermelho. Rafael freou bruscamente,
pois havia se distraído com pensamentos em Ângela. Droga, disse ele assustado.
Observava a rua e pensava consigo o quanto aquele lugar havia se tornado feio e
sujo com o passar dos anos. Foi quando virou para a janela do carro e se
deparou com um rapaz sujo apontando uma arma para a sua cabeça. Passa o dinheiro,
gritava o rapaz. Desorientado e assustado com a situação, Rafael tentava
acalmar aquela criatura transtornada. Tudo em vão, os gritos aumentam.
Dinheiro! Passa o dinheiro, insistia Miguel. Por muitas vezes, o namorado de
Ângela pensou em acelerar e sair em disparada, mas sabia que corria o risco de
ser morto. Tremendo e em desequilíbrio pela situação Rafael pegou a carteira e
o único dinheiro que havia nela era apenas vinte reais. Não costumava andar com
dinheiro na carteira, porque já fora assaltado outras vezes. Usava apenas
cartões de crédito. Eu não tenho dinheiro aqui, falou o ele amedrontado.
Furioso, Miguel deu uma tapa no rosto do rapaz. Na tentativa de resolver logo aquela
situação, o filho de Dona Maria entrega ao bandido o seu relógio de ouro que
ganhara de herança do pai, seu celular, os vinte reais e mais o anel que tinha
comprado para sua namorada. Queria resolver logo aquilo e sair livre daquele
transtorno. Com todos os pertences em mãos, Miguel tira um saco do bolso e os
coloca lá, mas o anel de Ângela cai e quando se abaixa para apanhá-lo Rafael
acelera e sai em disparada. Tomado pelo susto do barulho dos pneus Miguel
levanta e com ódio nos olhos não pensa duas vezes e atira. A bala acerta a
cabeça de Rafael que perde o controle do carro fazendo-o capotar por várias
vezes. Miguel foge sem se arrepender do que acabara de fazer. Há metros de
distância do assassino parava um carro amassado, sujo de sangue e um corpo com
os últimos suspiros de vida.
[Enquanto o carro capotava]
Rafael quis gritar, mas não tinha força pra isso.
Assim como o carro girava na pista, seus pensamentos giravam junto com suas
lembranças. Pensou na morte, sentia ela do seu lado. Pensou em sua mãe, tinha a
certeza que ela estava sentindo algo ruim naquele momento. Sabia disso porque
da outra vez que quase morreu afogado num rio enquanto nadava com amigos, ela
havia chegado desesperada procurando por ele e quando viu o filho morrendo
afogado, mesmo sem saber nadar se jogou àquela correnteza para salvá-lo. Os
dois quase morreram fosse o pescador que jogou a boia para ajudá-los. Desde
então sabia que sua ligação com Dona Maria era mais forte que qualquer coisa. E
outro giro. Agora veio a imagem de Ângela correndo para ele na praia. Muitas
imagens boas deles juntos apareceram em sua mente. Os beijos em Fernando de
Noronha, a primeira vez de ambos, o primeiro beijo, os momentos de carinho mutuo.
Outras lembranças boas apareciam enquanto tudo rodava. Lembrou-se do baile de
formatura e de como estava feliz ao lado dos os amigos naquela noite. Do rosto
da sua mãe toda orgulhosa em dizer às amigas que seu filho agora era formado.
Era, enfim, engenheiro. Um impacto brusco o atinge. Seus pensamentos se
dispersam no ar. Ele agora já não sabe que habita um lugar no mundo.
O telefone toca. Dona Maria atende sabendo que
algo ruim aconteceu. É a senhora Maria Isabel Bittencourt? Perguntou uma moça
de voz serena. Desesperada e transtornada a mulher pergunta o que aconteceu ao
seu anjo. A moça começa falando que o seu filho havia sido baleado e sofrido um
acidente. Sem esperar o fim da notícia Dona Maria larga o telefone e sai
desesperada pela rua em busca do seu anjo machucado.
Quando chega ao hospital depois de ter passado por
vários outros porque devido ao impacto da notícia, não esperou que a moça desse
o endereço do hospital, Dona Maria saiu pela rua a procura de um táxi e vai de
hospital em hospital até encontrar o que o filho estava. Entra descontrolada
gritando que queria ver seu filho e é barrada pelos seguranças. Rapidamente
aparecem outros médicos para tentar acalmá-la.
A mãe do Miguel sabia que o filho fora responsável
pelo acidente que havia acontecido perto. Na rua já se comentava o ocorrido. O
barulho do tiro não saia de sua mente. Seu filho desaparecera. Não conseguia
concentrar-se para orar. Em quem ele tinha atirado? Sabia que tinha sido por
dinheiro para comprar droga, mas porque ir além do mal? Um turbilhão de
lembranças veio à tona. Mas ela não conseguia lembrar quando o filho começara a
destruir sua vida com drogas. Olhou a fotografia de Miguel quando criança e
lembrou o quanto era indefeso. De como foi uma criança educada, que gostava de
estudar. Mas veio a separação. A perda do pai que era um herói na visão dele.
Aos poucos foi tomando choques de realidade. Parou de fantasiar. Começou a
mentir na escola. Começou a crescer num mundo de mentiras. Aos poucos se tornou
agressivo. Seco. Frio. Porém, quando a droga aparecera sua mãe não conseguia
lembrar.
Agora, diante do filho, Dona Maria chorava
incontrolavelmente. A bala havia atingido o cérebro. Rafael só sobrevivia por
ajuda de aparelhos. O cérebro já não comandava nada e teriam que desligar os
aparelhos. Ela que um dia dera vida a seu tão esperado anjo, teria agora a
decisão mais difícil da vida, ordenar a hora do desligamento dos aparelhos.
Miguel desapareceu pelos becos da favela, e sua
mãe nunca mais ouviu falar dele. Vive sozinha, angustiada pela casa. Passa
horas em frente às novas imagens de santos orando para que ele volte. Dizem que
foi visto pela última vez, em pontos de prostituição. Outros falam que ficou
louco, se embrenhou na mata e desapareceu. Só que ninguém sabe, é que Miguel
naquela noite caminhou pelos becos da favela procurando por drogas até que
encontrou uma boca de fumo e por lá ficou. Virou cliente e gastou tudo o que
tinha roubado do Rafael e outros. Começara a fazer dívidas com os traficantes
da favela. Quando não tinha mais como pagar, tentou fugir, mas foi aprisionado.
Depois o levaram para um alto do morro, colocaram-no dentro de pneus e atearam
fogo. Sem dó, os traficantes sorriam com aos gritos que Miguel lançava ao tempo
enquanto era sucumbido pelas chamas que corroíam as borrachas e se misturavam a
sua pele, derretendo, transformando-os em uma só coisa.
Ângela vive em uma profunda depressão. Até hoje
não conseguiu se recuperar da perda do seu amado. Todos os dias vai ao
cemitério visitar o túmulo com os restos mortais de Rafael.
E ao contrário do que o caro leitor pensa, Rafael
não morreu. Ele vive. Vive dentro da Melissa, que recebeu seu coração e pode
enfim, realizar seu sonho que era patinar no gelo. Está nos olhos do Lucas que
graças as suas córneas, o garoto de seis anos pode ver pela primeira vez a luz
do dia e finalmente, ir conhecer o mar. Rafael vive em Marcelo e Raquel, porque
cada um ganhou um rim e puseram fim àquelas sessões de hemodiálise intermináveis
em suas vidas e voltaram a sentir o sabor da água. Mesmo depois de sua morte
cerebral, Rafael pode viver em cada um deles. Dona Maria doou os órgãos do seu
anjo para salvar vidas, mesmo que não tenha conseguido salvar a sua.
Tinho Valério
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