quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Sinfonia de Lamentações


E até você me encontrar
Eu terei andado por lugares tristes
Terei fincado na pedra a espada da felicidade
E levarei comigo apenas uma adaga
 
A solidão será minha companheira de caminhada
Andarei de mãos dadas com a Morte
Por entre o deserto dos sonhos frustrantes
Sinfonias dolorosas tocarão sob minha mente
Com gritos de horrores sendo tenores viris

Até encontrar você não serei eu mesma
Estarei vestida para um confronto
Cheio de sangue e lamentações
Ou até mesmo batons venenosos ludibriando seus lábios
Para por fim sucumbi-lo até a Morte
A minha amiga de jornadas
E juntas cavaremos seu mausoléu
Com paredes cheias de sobras e lembranças do seu passado traiçoeiro

E ao fundo, bem de longe,
Ouve-se o Tango banhado por lágrimas
E sons saindo arranhados
Do violino do espectro
Que tocará para você por toda a eternidade...

Tinho Valério

*Imagem: Auto-retrato com a Morte a tocar violino de Arnold Böcklin

O Velório de Dona Mariquita de Carmen de Zé de João Rufino.

Era uma manhã de março quando correu pela pequena cidadezinha de Cuia das Onças, o boato da morte de uma de suas moradoras mais ilustres, a rezadeira Mariquita de Carmen de Zé de João Rufino. Uma onda de tristeza e luto invadiu a cidade e assim seguiu-se o dia. Ouvi boatos que a morte de nossa tão ilustríssima senhora havia se dado de uma raiva que tinha tido do seu filho Ozival. Deu-se que o primogênito de nossa personagem teria lhe roubado uma galinha do seu chiqueiro para tomar com pinga na casa da rapariga Deusdete Faísca, porém nada se confirmou. Embora, o fato do roubo da galinha seja verídico. Dona Mariquita na verdade havia morrido de um infarto, causado pelos seus excessos de descuidos com sua alimentação. Como a mesma falava “Meu fí, eu como de tudo, porque se eu num comer eu morro do mermo jeito”, e assim aconteceu. Morreu feliz, como também incrivelmente chateada ao dar a falta de uma galinha no seu galinheiro.
Na mesma tarde saiam pelas ruelas e becos da pequena cidade, mulheres a procura de rosas para enfeitar a defunta no caixão. Enquanto isso, na casa da finada, chegava às beatas da igreja para rezarem o terço. Ozival já se fazia presente na casa do prefeito pedindo ajuda para poder comprar o caixão. Apesar de ser uma velha rabugenta, de pouca simpatia e muito fofoqueira, Dona Mariquita era muito querida dentro da pequena cidade de Cuia das Onças. Era ela quem rezava contra mau olhado, preparava lambedores com plantas medicinais da caatinga para curar os doentes do sertão nordestino. Geralmente não levava desaforo pra casa. Era agressiva e não tolerava perguntas ou comentários desnecessários. Lembro-me de uma vez ter ido com uma sobrinha, que sentia-se mal e queria a reza de nossa rezadeira. Ao chegarmos lá, minha sobrinha dizia que estava dando nela umas coisas, Dona Mariquita não fez arrodeio, olhou-a nos olhos e disse “Pois receba, fia”. Na hora eu murchei de vergonha, mas minha sobrinha sem entender deu o desfrute de dizer que não eram coisas boas, mas coisas ruins e, mais uma vez nossa graciosa senhora retrucou com uma pequena frase “Pois devolva se num quer!”. Mas enfim, o fato foi que depois da reza, a minha sobrinha ficou ótima e não voltou a sentir mais nada.
Agora com tudo arranjado, daria início ao evento da cidade: O velório de Dona Mariquita de Carmen de Zé de João Rufino. Já era quase noite quando por fim, a defunta encontrava-se dentro do caixão, arrodeada de flores de todos os tipos, o que causava certo cheiro enigmático, característico mesmo velório. As velas já acesas queimavam enquanto todos os presentes rezavam mais um terço. Ozival chorava a morte de sua mãe, quando se súbito olhou para Ana de Seu Chico e perguntou se a mãe estava de calcinha. Houve um silêncio fúnebre na sala quebrado pela tosse de um senhor que chegava de mansinho à porta. A mulher, totalmente envergonhada com a pergunta do homem, apenas balançou a cabeça em sinal afirmativo. Voltando o olhar pra mãe, o primogênito dizia que o que a mãe mais temia era ser enterrada sem suas roupas íntimas. Mais uma vez, outro silêncio fúnebre.
O que ninguém sabia, era que a tudo isso, Dona Mariquita assistia de camarote. Seu espírito ainda continuava pela casa. Consciente de sua morte, a velha rabugenta só observava. Estava detestando ver o filho com aquela calça velha e surrada, rasgada até nos fundilhos. O que todos pensariam dela? Que não cuidava do filho, pensou a defunta ou espirito, como o leitor a queira chamar. Minutos depois chega sua comadre Francinete de Sotinha que ao entrar na casa, deu um grito seguido de um choro que assustou uma das beatas fazendo com que a mesma soltasse o terço dentro do caixão. “Minha irmã do coração, o que fizestes comigo? Porque partiste sem ao menos se despedir de mim?”, dizia aos prantos a comadre. Nesse momento, Dona Mariquita aproximou-se da mulher chorosa e soltou um desabafo “Sua imunda, você nunca quis saber de mim. Não é agora que vai querer saber. Passei um mês internada no hospital e você nunca apareceu lá pra me ver!”. E assim seguia o velório, as horas iam passando. Francinete chorando escandalosamente a morte de sua amada comadre e nossa defunta resmungando tudo o que as pessoas faziam.
Já começava a ficar tarde da noite e aos poucos os visitantes se dispersavam. E como em toda cidade pequena, nesses eventos velóricos sempre aparecia um bêbado. No de nossa personagem não podia ser diferente. Eis que chega o velho Pituca, tropeçando entre os pés, adentra no recinto do velório e logo começa a chorar a morte da ilustríssima Dona Mariquita de Carmen de Zé de João Rufino. Um minuto depois esquece a dor da perda, vira para o lado e pergunta a Ozival se lá não tinha nenhuma pinga pra ele tomar. O filho de nossa defunta agarra o bêbado pelo braço e o põe pra fora do local, embora isso não o tenha afugentado, pois Pituca deita num banco do lado de fora da casa e adormece.
O enterro havia sido marcado para as dez horas da manhã. Estava amanhecendo quando o velado corpo de Dona Mariquita recebia a visita de Josina de Ronaldo, uma mulher alta e magra, viciada em jogo de bicho. Ao vê-la entrando em sua casa, a defunta de súbito deu um pulo e começou a dizer desaforos a visitante – o que não cabe escrever aqui o quanto de palavrões saiu da boca de nossa amada senhora morta. Pularemos essa parte e esclarecerei que todo esse “siricutico” devia-se a uma galinha gogó de sola que a mulher havia comprado a Dona Mariquita e tinha enganado-a, indo embora sem pagar. Se existia uma coisa que nossa amada rezadeira não aceitava, era ser passada para trás e envelhacada. As ondas negativas vinda da raiva que a protagonista sentia era tão forte, que acabou trazendo um espirito ruim para o local, fazendo com que o mesmo tomasse posse do corpo de uma senhora presente no velório, causando o maior tumulto no local. O espírito causou tanto bafafá no velório que todos saíram para ver a mulher possuída comer terra do terreiro em frente à casa que deixaram o corpo de Dona Mariquita sozinho na sala. Quando conseguiram conter a mulher e exorcizar o espírito mau, já se ia perto das dez da manhã.
Seguiam em caminhada para a Igrejinha da cidade. Duas filas. Uma de mulher, outra de homem. Duas criancinhas levando uma grinalda de rosas. E o caixão levando o corpo gélido de Dona Mariquita para a missa de corpo presente. Nesse momento a cidade inteira para pra ver a passagem do velório. Lembro de ter ouvido uma mulher dizer que ela já ia tarde, a mais tempo que essa velha ruim já tivesse ido. Logo mais adiante outra emocionada dizia “Ah meu Deus, fazia uns lambedor muito bom!”. Terminada a missa, todos seguiam para o cemitério público da cidade. A cova já tinha sido feita desde o dia anterior quando se anunciou a morte de Dona Mariquita de Carmen de Zé de João Rufino. Na hora da verdadeira despedida, apenas duas pessoas manifestaram sua dor. A comadre Francinete de Sotinha que desmaiou fingidamente, só para ser agarrada pelo soldado Joarez que acompanhava o cortejo. Digo isso com seriedade porque bem vi quando ela era carregada pelo soldado e vi-a abrindo um olho para ter a certeza do que tinha feito. E a segunda pessoa a manifestar sua dor, foi o filho Ozival que se jogou em cima do caixão num choro desesperado pedindo para que a mãe não o deixasse. Amigos tentaram levantá-lo de cima do corpo frio e rígido de sua mãe. Quando finalmente iam conseguindo tirá-lo de perto da defunta, Ozival pisa numa pedra em falso e cai dentro da cova a qual seria enterrada o corpo de Dona Mariquita. Desesperado o homem começa a gritar e pedir para que o tirem de lá. Nessa hora Pituca, ainda bêbado joga um pequeno comentário que me fez rir: “Vije, e já desistiu de ir com a mãe?”. Ajudei a jogar a terra dentro da cova, depois colocamos a grinalda e seguiu-se novamente a vida tranquila na pacata cidade Cuia das Onças. O espírito de nossa personagem se dispersou pelo mundo. Apesar de que os moradores novos da casa da finada, dizem ouvir de vez em quando alguns ruídos que juram ser a curandeira que morou lá. Ozival casou com Deusdete Faísca que deixou de ser rapariga. Embora, há boatos que ela o trai com Mané Troxão, pelo nome do homem, dispensa alguma explicação e espero que o caro leitor consiga entender. E por fim, Francinete de Sotinha, agora era Fancinete de Joarez, meses após a morte de nossa amável rezadeira, a comadre apareceu grávida. E vive muito bem com seu soldado. A cidadezinha continua na mesma. Parada. Ainda comentaram por alguns meses a morte de nossa personagem, mas logo foi esquecida. Eles agora esperam por mais um evento, e dessa vez é a festa de Nossa Senhora da Anunciação que começa em março.

Tinho Valério

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Vou Adiante

Vou adiante
Existe uma voz que me chama
Em forma de canto

Vou abrir as asas
Talvez penas cairão
Mas meus pés machucados levitarão ao sopro do vento

E assim insisto
Vou adiante
Agora sei de lugares que não quero ficar
Já ouvi alardes que soam de lá
Sei das ciladas dentro de mim
Coisas que jamais ninguém entende

E vou adiante
O canto que me chama
São as vozes dos amantes
Dos que me levam daqui.

Tinho Valério

A Lua e o Lago




Todos os dias ele estava ali. Azul. Tranquilo. Ao seu redor, árvores imponentes. Os pássaros mais raros, com os cantos mais lindos, com as cores jamais imaginadas. Tudo em perfeita harmonia. Mas ao seu íntimo particular, o Lago sempre se sentiu sozinho. O único momento em que se sentia completo, vivo, era quando o Sol caía e no céu surgia a Lua, que, enamorada, o banhava com os raios prateados lhe trazendo a tranquilidade da noite.
Noite após noite os enamorados se encontravam, mas nunca se tocavam, tinham que se conformar apenas com olhares. O desejo utópico de se tocar era o que movia a paixão avassaladora que um sentia pelo outro. Os dias se passavam e era sempre assim, ela brilhava para iluminá-lo, e ele, iluminado pelo brilho de sua amada, desejava poder um dia senti-la junto de ti.
O tempo parecia voar nas noites em que a Lua, gigantesca e prateada, surgia ao céu. Entretanto, logo aparecia radiante e jorrando faíscas, o Sol. O soberano que iluminava tudo e trazia as cores para encantar o dia. Sentia inveja do Lago, porque sabia que o amor do astro magnífico pertencia somente a ele. Não admitia o fato de raramente poder ver a Lua aparecer e em poucos minutos ter que desaparecer para dar lugar somente a ela para jorrar todo o seu brilho de amor àquele pequeno ser de tão insignificante presença naquele lugar, já que havia tantos rios ao redor com água suficiente para manter vivas outras espécies e tudo ao redor.
Esperto pelos tantos milhões de anos de existência, o Sol viu no desespero apaixonado do Lago um jeito de separá-los e ofereceu-lhe uma proposta para que ficasse junto de sua enamorada Lua. “Se queres estar perto de sua amada para sempre, ouça o que direis”, dizia o Sol ao apaixonado Lago. Ingênuo, ele ouvia atentamente a proposta do astro-rei. “Se da forma como me falas encontrarei e ficarei por toda a eternidade com a minha amada, assim farei”. Sorrindo o Sol se despediu do pequeno apaixonado e logo deu lugar à luz prateada da tão desejada Lua. Animado com o que estava por vir, o Lago despejou inúmeras declarações a sua amada. Sem entender toda aquela paixão tão exagerada naquela noite, a Lua simplesmente deixava-se levar pelas manifestações de carinho do seu amado, e brilhava, e sorria, e enamorava-se cada vez mais. Ao despedir-se de sua amada, o Lago sentiu um vazio enorme tomar conta de todo o seu redor. Imaginou ser a ansiedade de saber que logo estaria junto do seu amor por toda a eternidade.
Na manhã que surgia, o Sol aparecia no nascente maior do que o de costume. A sensação na terra nesse momento era de um calor insuportável. As temperaturas haviam sido elevadas de maneira que nunca fora registrado na Terra níveis tão altos. “Preparado para ires ao encontro de sua deusa?”, perguntava o Sol ao apaixonado Lago. “Nunca esperei tanto por isso” respondia o ingênuo ser insignificante que sequer sabia o que estava para acontecer. Nessa hora o Sol começou a faiscar e brilhar como jamais havia feito antes. Os animais começaram a cegar com os raios, morrendo logo em seguida com as queimaduras em suas peles. As plantas murchavam e iam perdendo força até não resistir e também morrer. O Lago aquecia a ponto de os peixes não suportarem e pularem para a terra e morrerem fritando pelos raios faiscantes liberados pelo Sol. Enfim, o Lago começava a evaporar-se e levitar em direção ao céu transformando-se em nuvem. Agora seu encontro com sua tão enamorada Lua estava se aproximando, mas, do alto de onde se encontrava o ingênuo amante, ele percebeu o quão desastroso foi seu desejo. Tudo ao seu redor havia morrido. Os animais, as árvores, os peixes. Nada tinha vida. Uma tristeza avassaladora tomou conta de si. Ao perceber o que havia causado olhou para o Sol que gargalhava dele e da situação em que se encontrava. Do lado oposto ao Sol, a Lua, a tão enamorada Lua, ia surgindo vagarosamente, com o mais belo sorriso que ela podia oferecer, mas logo sua expressão mudou assim que viu tudo destruído. Ao procurar seu amado, encontrou apenas rachaduras no chão que um dia fora banhado pelas límpidas águas frias do seu amor.
O Lago agora era uma nuvem pesada e escura. Então, o astro-rei soprou-o fortemente e o fez sair em direção ao infinito. Desesperado, o ingênuo apaixonado gritava por socorro. O que foi em vão. Devido ao seu desejo insano, o Lago havia perdido tudo. O Sol gargalhava enquanto ia desaparecendo e dando lugar ao negro da noite.
Vagarosamente, o Lago, agora transformado em nuvem, passava diante de sua amada, que decepcionada, o olhava com tristeza, pois sabia que nuvens são passageiras e levam as águas a outro lugar. O ingênuo amante via sua deusa sofrer a perda do amor entre ambos. Ele não sabia como parar e permanecer junto dela por todo o sempre. Não voltaria mais a vê-la todos os dias como de costume, pois flutuava no céu em direção ao desconhecido. Em função de um desejo absurdo, perdera o grande amor de sua vida, e tudo o que vivia ao seu redor.
Agora flutuando pelo deserto, não pode conter sua tristeza e chorou. Sobre o deserto, se desvaneceu em água e ali mesmo, foi sugado pela sede da terra seca.

Tibúrcio Valério