Morrer não
dói, embora eu sempre tivesse essa ligeira impressão. Não senti nada na hora de
minha partida e não quero falar sobre ela. Foi até rápido. Também jamais
saberei se dói nos outros. Ninguém chorou por mim. Fui mais um morador de rua
que morreu jogado ao abandono. Durante toda a minha vida recebi desprezo.
Jamais conheci a desgraçada que me pôs no mundo, nem tão pouco o imbecil que
comeu ela e consequentemente fecundou o óvulo que me gerou. Não sei até hoje se
nasci de cesárea ou parto normal, apenas sei que vim ao mundo e logo em seguida
fui abandonado. Terminei num orfanato qualquer, onde fui humilhado, agredido,
abusado sexualmente, mas também aprendi a me defender de muitos. Com oito anos
fugi daquele inferno comandado por freirinhas que se diziam adoráveis irmãs,
quando na verdade não passavam de umas putas miseráveis. Batiam nas crianças, mas
só encostaram em mim uma vez e foi o suficiente para quebrar o braço de uma na
queda que dei nela. Na mesma noite consegui fugir. Desde então minha vida foi
fugindo de orfanatos até fazer maioridade. O resto foi nas ruas. Foi aqui, onde
aprendi a ser malandro, embora nunca assaltei ninguém... claro que furtei,
principalmente comida. Tinha fome e ninguém ajuda a um mendigo. Aliás, ninguém
vê um mendigo jogado nas calçadas com fome, sede, precisando de carinho. Ao
contrário do que muitos acham, eu sentia necessidade de carinho, um afago na
cabeça, de um olhar amoroso, mas ao invés, era invisível aos olhos das pessoas
que passavam por aqui, outros demonstravam repugnância, ódio, nojo... sentia raiva dessas pessoas. Talvez por isso
tenha sido tão amargo, mas nunca fui mau. E que importância tem isso se hoje
estou aqui, morto! Gélido e endurecendo! Certamente alguém pela primeira vez
irá me perceber, embora morto, mas irão me notar. Depois virá algum órgão
recolher o cadáver e após todas as autopsias, terei duas opções pra o
“descansar em paz”. A primeira serei sepultado como o indigente e ali
descansarei em paz, bem como vou apodrecer em paz e ser devorado em paz pelos
vermes que irão comer minha carne podre. Já a segunda opção, posso ser doado,
ou até mesmo, vendido a uma faculdade pra servir como objeto de estudo aos
estudantes da área biomédica; aqui talvez não caberia o “descanse em paz”, mas
certamente serei lembrado, como nunca fui em toda a minha vida, e no convite de
formatura serei homenageado, mesmo como “o cadáver”, mas serei agradecido por
algo que fiz, de útil, mesmo depois de morto.
Tibúrcio Valério
(11/12/2010)